domingo, 11 de maio de 2014

Caminhada

Depois do café da manhã - porque a vida de um dia se divide entre o antes e o depois do café da manhã - eu fiz o que já era premeditado: subi o morro. Era uma cerração que me deixava a par só do que estava a poucos metros por vir. De repente me dei conta, pelas bostas frescas no caminho, que estava indo de encontro a quatro cavalos dos quais meu pai tinha falado. A ideia de que a qualquer momento eu iria vê-los surgir do meio da névoa me fascinou.

Ouvi uma sineta, chacoalhando no ritmo de uma pastada, que na verdade não tem ritmo nenhum, só uma lentidão e uma calma infinitas. Era o que eu mais tarde chamaria de Índio. Mas o primeiro a aparecer foi o Pequeno, à minha esquerda uns seis metros à frente. Logo em seguida, mais à direita e mais distante, surge o Singelo.

O Singelo, diferente do Pequeno, que seguiu pastando, ficou parado me olhando. Alguns diriam que era um olhar triste. A mim lembrou uma daquelas pessoas conformadas com a vida. Não necessariamente felizes nem tristes. Só conformadas. Talvez um pouco de humildade também. E ele tinha a pelagem marrom lisa, sem nenhum detalhe. E era magro. Foi meu preferido.

Logo mais surge o Preto, que tinha a testa do focinho branca. E numa parte mais baixa do relevo e distante dos outros, o Índio.

O Índio, ao contrário dos outros, pareceu incomodado com a minha presença. Levantou bem a cabeça e saiu. A princípio o chamei assim por causa da pelagem malhada de três cores, o que me lembrou um cavalo de índio. Mas por fim o nome também se adequou por ser o mais desconfiado, arisco. Provavelmente a razão para lhe botarem uma sineta. Um fujão.

Pra minha surpresa, por fim, surge um quinto. Marrom com um naipe de ouro branco na testa. O Manchinha.

Passei um tempo com eles. Principalmente com o Singelo, o único que toquei, e nunca conseguindo chegar a menos de dez metros do Índio. Depois me sentei no lugar de sempre pra começar a escrever isso. Ali tocava um som que devia ser de anfíbios, mas a melhor descrição que posso fazer é de que pareciam flautas macias conversando. Flautas que qualquer pessoa tocaria de forma mais apressada. Qualquer pessoa.

Aquela sinfonia sem ritmo e com uma calma infinita era a trilha sonora do pastar das cinco criaturas incríveis que surgiram no meio da névoa de uma manhã de sexta quando eu saí pra caminhar depois do café. Foi bom esse momento. Agora, uma hora depois, o sol já dissolveu a cerração. E o olhar de Singelo não me sai da mente.
Existem dois tipos de escuro
e dois tipos de silêncio

aquele que se tem em um lugar fechado, abafado, quase absoluto
e aquele que se tem na noite do campo

amplo
aberto
vasto

e polvilhado de estrelas, de grilos, de folhas secas molhadas no chão refletindo e fracionando a lua, de névoa branca sobre a água, onde se rompe um pulo de peixe (e esse é o maior barulho de todos, a lua dos sons)

e esse escuro e esse silêncio vastos são tão vastos que parece que sublimam o teu ser pra fora, como uma expiração sem fim
o que decerto deve explicar essa sensação paradoxal de ser ao mesmo tempo tão nada e tão grande
tão corpo e tão alma
tão etéreo e tão terrunho

essa sensação de querer sair voando sem deixar de sentir a grama nos pés.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Sair para sempre
seria tão errado quando ficar para sempre

porque o problema não está em sair ou ficar
ou partir ou voltar

o que fere a liberdade é todo "para sempre".