sábado, 11 de setembro de 2021

Aquela paz de uma tarde, que é como se fosse manhã
de sábado, que é como se fosse domingo, ou terça
ouvindo, que é como se não ouvisse
um pássaro, que é como se fosse eu
lá fora, que é como se fosse aqui

a paz do momento que não importa
da indiferença autêntica, inocente

todas as filosofias
todas as ciências
todas as religiões
nenhuma delas
ser um bicho, finalmente
e menos: sem qualidades

enquanto um corpo é inspirado e expirado
que é como se fosse eu respirando

e não sedento, sem a fim
sem dentro, sem mim
rio como um rio.

sábado, 6 de julho de 2019

Na verdade eu sempre fui todo foda-se e coração. O resto é tudo disfarce. Meu maior defeito é a propensão ao vício, que recém descobri ser sinonímia de paixão. Meu segundo defeito é considerar isso um defeito. Minha virtude é saber que é um defeito considerar isso um defeito. E minha segunda virtude é não ligar tanto pra esses dois defeitos e essa virtude. O que escorre da destilação dessa análise? Que na verdade sempre fui todo foda-se e coração. Já razão raiva ordem seriedade e calma, só disfarce.

quinta-feira, 4 de maio de 2017

Ponteada do solo

Do sol ao solo
Da chuva ao chão
Vem uva, vinho, ovo, erva e pão.

Do malte, lúpulo e vida a cerveja...

Da abelha e flor da mata a cera e o mel.

(Batidas de viola)

Mas tem uns hóme
De mente presa e capa preta
Que não permitem que se plante tudo que se queira e querem que comamos tudo o que se põe nas planta e que se mate tudo o que espontâneo é...

Mas sobre as hierarquia eu sei
Que um ponto fraco ao menos tem
Que a base quando movimenta mexe o topo mas se o topo cai a base aguenta em pé.

(Batidas de viola)

Camponês... Cidadão...
Operário, aluno, escravo, filho, telespectador, freguês, consumidor.

Mulher, índio, negro...
Livre amor sem preconceito...

(viola...)

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

O LIVRO

Jorge Luis Borges 

Dos diversos instrumentos utilizados pelo homem, o mais espetacular é, sem dúvida, o livro. Os demais são extensões de seu corpo. O microscópio, o telescópio, são extensões de sua visão; o telefone é a extensão de sua voz; em seguida, temos o arado e a espada, extensões de seu braço. O livro, porém, é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação.
Dediquei parte de minha vida às letras, e creio que uma forma de felicidade é a leitura. Outra forma de felicidade − menor − é a criação poética, ou o que chamamos de criação, mistura de esquecimento e lembrança do que lemos.
Devemos tanto às letras. Sempre reli mais do que li. Creio que reler é mais importante do que ler, embora para se reler seja necessário já haver lido. Tenho esse culto pelo livro. É possível que eu o diga de um modo que provavelmente pareça patético. E não quero que seja patético; quero que seja uma confidência que faço a cada um de vocês; não a todos, mas a cada um, porque “todos” é uma abstração, enquanto “cada um” é algo verdadeiro.
Continuo imaginando não ser cego; continuo comprando livros; continuo enchendo minha casa de livros. Há poucos dias fui presenteado com uma edição de 1966 da Enciclopédia Brockhaus. Senti sua presença em minha casa − eu a senti como uma espécie de felicidade. Ali estavam os vinte e tantos volumes com uma letra gótica que não posso ler, com mapas e gravuras que não posso ver. E, no entanto, o livro estava ali. Eu sentia como que uma gravitação amistosa partindo do livro. Penso que o livro é uma felicidade de que dispomos, nós, os homens.

sexta-feira, 12 de junho de 2015

No dia em que eu te vi eu não fazia ideia de quem tu era
nem de quem tu iria ser pra mim. Eu só tinha uma decisão muito clara em mente: sair. Sem me preocupar com "a estrada para além da curva da estrada".

Nossos lábios e braços se encontraram um tempo depois, mesmo que os meus olhos já tivessem te encontrado um pouco antes.

Depois disso, o que eu lembro com mais força é mais ou menos o seguinte:

Sol (aquele bem macio)
Mato (o mais cheiroso)
Fogão à lenha; e aqui tu vai concordar comigo que é merecida uma pausa.

Faz exatamente um ano, hoje, que esse fogão à lenha e tudo que estava ligado a ele - o chão de madeira, o ar quente, a penumbra, o colchão, a vela verde-azul e, louvadas sejam as coisas sagradas mundanas, aquilo que estava ali em toda parte e que entrou em nossos corpos e chamamos até hoje de Amor - representam pra mim um começo.

Tu me mostrou a Realidade na sua forma mais bonita e simples.

Tu escreve Bom Dia com maiúsculas, e talvez tu não saiba, mas isso simboliza muito bem a forma como tu leva a vida, e eu quero continuar levando ela assim mesmo contigo. Bem assim. Dando a devida importância e intensidade às coisas do agora. Porque afinal de contas, a vida é feita de dias, de momentos, e o sagrado está em tudo, pra onde quer que olhemos com a devida calma e atenção. Hoje eu olho pra ti com a devida calma e atenção. E te digo: nunca foi tão bom acordar de manhã.

Te Amo!

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Do banheiro interditado, pra vida

Às vezes simplesmente não dá pra fazer (n)o mesmo de sempre
e se é forçado a escolher outra porta
e todo um novo microscosmosuburbano é revelado
na face interna.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

hoje é sexta
o sol passa entre as folhas e atravessa a janela do banheiro
do mesmo jeito que em outros dias
só que hoje é sexta

a palavra "trabalho" parece um tantinho ridícula
e sente-se um pouco mais de empatia com os cachorros na rua
que andam por aí catando comida, sexo e descanso

mas só até a segunda começar
o que me parece um pouco ridículo, hoje que é sexta.

quarta-feira, 30 de julho de 2014

Sítio Bela Vista

No horizonte que nos arrodeia
o vermelhão se espalha bem mansinho num gradiente 
enquanto a lua brilha em cima, feito um brinco

corta a cana, Sérgio, e dá pras vaca!
enche o cocho das galinha
cuida o porcão que quando vê ele foge e já ta atrás de ti
cafungando tu pegando o trato
e vai que te abocanha!

lixo?
se demora a ter...
esse é pros cachorro
esse pros porco
e esse pra horta
pronto, só lavar.

taca lenha no fogão!
arreda essa chaleira antes que seque!
tira as batata doce do forninho, vê o arroz, o frango e o aipim e o pinhão!

agora um mate...
e vamo dá pernada!
tem cachoeirinha, figueira centenária, açude, cânion...
e o Urso velho firme, sempre esperto, nos cuidando como o veterano que é daqueles campos.

e os pé de fruta, bah!
só imagino no verão
vai dá de tudo!

ô dia que rende o do colono!
e parece até que tem mais tempo pra "vadiar", prosear, dormir...

no fim, tudo se tinge de laranja
as sombras se esticam até não poderem mais
e se arrebentam todas juntas numa única e grandiosa sombra - a Noite.

logo já se vai deitar
e a sensação de saciedade é bem além de ter comido, ou ter rendido
é sensação de ter vivido.

...

Eu estive caminhando pelos campos de cima do Cerro, e sabe
não vi nenhuma teoria
nem palavra, letra
nem conceito ou número qualquer naquelas bandas

vai ver é por isso que quando a professora do Sérgio fez uns cartões com figuras de árvores que tem por ali e o nome escrito embaixo, pra estimular ele a aprender a ler
ele seguiu ignorando aqueles símbolos e acertando tudo com a destreza de um botânico colono
como se lesse.

e ele lê.
lê o "jeitão" que a natureza tem
essa coisa holística que não se explica
e que é tudo o que ela têm na realidade.

domingo, 11 de maio de 2014

Caminhada

Depois do café da manhã - porque a vida de um dia se divide entre o antes e o depois do café da manhã - eu fiz o que já era premeditado: subi o morro. Era uma cerração que me deixava a par só do que estava a poucos metros por vir. De repente me dei conta, pelas bostas frescas no caminho, que estava indo de encontro a quatro cavalos dos quais meu pai tinha falado. A ideia de que a qualquer momento eu iria vê-los surgir do meio da névoa me fascinou.

Ouvi uma sineta, chacoalhando no ritmo de uma pastada, que na verdade não tem ritmo nenhum, só uma lentidão e uma calma infinitas. Era o que eu mais tarde chamaria de Índio. Mas o primeiro a aparecer foi o Pequeno, à minha esquerda uns seis metros à frente. Logo em seguida, mais à direita e mais distante, surge o Singelo.

O Singelo, diferente do Pequeno, que seguiu pastando, ficou parado me olhando. Alguns diriam que era um olhar triste. A mim lembrou uma daquelas pessoas conformadas com a vida. Não necessariamente felizes nem tristes. Só conformadas. Talvez um pouco de humildade também. E ele tinha a pelagem marrom lisa, sem nenhum detalhe. E era magro. Foi meu preferido.

Logo mais surge o Preto, que tinha a testa do focinho branca. E numa parte mais baixa do relevo e distante dos outros, o Índio.

O Índio, ao contrário dos outros, pareceu incomodado com a minha presença. Levantou bem a cabeça e saiu. A princípio o chamei assim por causa da pelagem malhada de três cores, o que me lembrou um cavalo de índio. Mas por fim o nome também se adequou por ser o mais desconfiado, arisco. Provavelmente a razão para lhe botarem uma sineta. Um fujão.

Pra minha surpresa, por fim, surge um quinto. Marrom com um naipe de ouro branco na testa. O Manchinha.

Passei um tempo com eles. Principalmente com o Singelo, o único que toquei, e nunca conseguindo chegar a menos de dez metros do Índio. Depois me sentei no lugar de sempre pra começar a escrever isso. Ali tocava um som que devia ser de anfíbios, mas a melhor descrição que posso fazer é de que pareciam flautas macias conversando. Flautas que qualquer pessoa tocaria de forma mais apressada. Qualquer pessoa.

Aquela sinfonia sem ritmo e com uma calma infinita era a trilha sonora do pastar das cinco criaturas incríveis que surgiram no meio da névoa de uma manhã de sexta quando eu saí pra caminhar depois do café. Foi bom esse momento. Agora, uma hora depois, o sol já dissolveu a cerração. E o olhar de Singelo não me sai da mente.
Existem dois tipos de escuro
e dois tipos de silêncio

aquele que se tem em um lugar fechado, abafado, quase absoluto
e aquele que se tem na noite do campo

amplo
aberto
vasto

e polvilhado de estrelas, de grilos, de folhas secas molhadas no chão refletindo e fracionando a lua, de névoa branca sobre a água, onde se rompe um pulo de peixe (e esse é o maior barulho de todos, a lua dos sons)

e esse escuro e esse silêncio vastos são tão vastos que parece que sublimam o teu ser pra fora, como uma expiração sem fim
o que decerto deve explicar essa sensação paradoxal de ser ao mesmo tempo tão nada e tão grande
tão corpo e tão alma
tão etéreo e tão terrunho

essa sensação de querer sair voando sem deixar de sentir a grama nos pés.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Sair para sempre
seria tão errado quando ficar para sempre

porque o problema não está em sair ou ficar
ou partir ou voltar

o que fere a liberdade é todo "para sempre".

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Poema ao meu amigo André

O Parque da Redenção tem esse nome por algum motivo que eu desconheço
E no dia da Ressurreição do Cristo-Sanguinolento fomos lá, o André e eu e a familia do André
Tia Prima, O Pai, A Avó até
Mas estávamos andando mais nós dois mesmo
Eu e o André

Vimos uma porção de bancas, e a nossa Redenção veio naquela tarde muito sóbrios
Depois dessa sequência interminável de noites chapados - num nível módico mas constante

No dia seguinte os parentes do André foram embora
Tia Prima, O Pai, Vovó tão doce
Daí você vai notar
(eles falam muito 'você', o André bem mais na presença deles)
Daí você vai notar que nas duas vezes que falei da Tia Prima eu não separei
E foi por gosto de não separar, que de tanto que elas se implicavam não dava pra imaginar elas separadas

No dia seguinte eles foram embora
O André e eu fumamos um baseado em seguida
Mais pela Redenção que havia nisso do que pelo barato, que nem foi tanto

A tarde correu lenta, eu procrastinando muito.
Naquela mesma tarde fomos de novo ao Parque da Redenção
Que se chama Parque Farroupilha, na verdade
E lá participamos de uma aula aberta de yoga,
E rimos das piadas internas da nossa casa
Que também é a casa do Léo, mas o Léo não anda frequentando muito, mas a gente ainda gosta muito dele
E depois voltamos pra casa
O André ainda comprou umas coisas numas bancas da feira da redenção
Que estavam no final desse domingo enorme
Que foi  o da volta do Jesú-Subiu-Aos-Céus ou algo assim

Tudo foi bem, e esse é um poema de Redenção
Que vai bem, vai bem e parece que vai acabar num 'mas' em itálico
Mas esse não vai:
A vida anda ótima, a Casa é ampla, eu sinto que tenho espaço no peito pela primeira vez de todas
Nunca desenhei tanto, nunca senti tanto amor pelas mulheres e elas por mim
Os cabelos me crescem fortes e enrolados, o sangue corre na velocidade certa de cada hora
As manhãs começam cedo, nunca estive tão saudável
Todo fim de tarde parece que o Zitarrosa está tocando guitarra na nossa sala.

segunda-feira, 3 de março de 2014

Enquanto comíamos ao redor da vela acesa
E que não tinha função, senão a de acalmar o ancestral interior
Que devorava um prato de comida
(e que haveria de gostar mais de fazer isso ao redor do fogo)
Embalado pela Fome Imensa e pelo Bill Withers

Enquanto eu servia o chá gelado
E com os olhos da Fome Imensa comia as texturas do pepino em conserva
E me lambiam os ouvidos barulhos lembrados de uma música do Pink Floyd
Que apresenta sons de alimentos sendo manipulados,
E o tilintar das louças nos dá água na boca

Me riscou um riso na cara
De te lembrar ontem
Chapada

Fazendo amor com a caixa de som

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

A mulher gritava. O cão latia.
-Não late mais! Não late mais, seu animal!
A mulher latia. O cão não entendia.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

o rastro de um caracol parece às vezes sofrimento
mas é pelo jeito dele andar
porque se corresse, ou se saltasse...
mas é pelo jeito de eu olhar pra aquele andar, quem sabe

e as uvas que caíram na língua da minha mente agora
eu hei de achar uma importância nelas
até lá se bate em cordas, peles...
que quem sabe seja isso mesmo

porque tem coisa que vem pra dizer
já outras vem pra calar.