terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Me deixa

Menina...
De pé na praia
Poxa, eu te mereço?
Já sei o que vai dizer
“Não sou tão boa quanto acha”.
Me deixa então ser esse louco
Apaixonado, exagerado, otimista
Me deixa ver você como nunca ninguém viu
Nem você mesma
Me deixa me afogar nos teus problemas 
Nas tuas mágoas, raivas e fraquezas
Me deixa deitar sobre os teus espinhos
Me deixa me afogar nos teus cabelos
Nas tuas pernas, braços, no teu peito
Me deixa e vem deitar sobre o meu tronco
Eu te quero assim, inteira como a mata
Onde me perco de propósito, me entrego
Piso sobre as grimpas e me arranho
Deixo a terra grudar no suor
E os mosquitos se esbaldarem
Me deixa sentir que você é real assim
Porque você me faz forte
Então, aproveite e se entregue, salte
Nos meus braços
Selvagem
Inteira
Eu quero trilhar tua mata seminu e de pés no chão
Eu quero sentir tudo sem nenhuma seleção
E te dar tudo que você merece.

Feliz por você

Feliz por você, veranista!
Que vem à praia uma vez ao ano
E hoje acordou com céu azul, ar quente e um vento fresco.
 
A cidade está de braços abertos, os banheiros estão instalados
As cervejas estão frescas, as torneiras estão brilhando
Os músicos estão ensaiados e as mesas estão postas.
 
Venham! Curtam, com seus amigos, crianças e amadas
Eu sei como é a sensação
Feliz por você!
 
Feliz por vocês, meus bichos
Que descansam bem saudáveis e tranquilos.
 
Feliz por você, corruíra
Que encontrou no mato que arranquei
Em meio à terra solta, alimento.
 
Feliz por você que está sofrendo
Porque sei que essa dor é a porta estreita
Para a nova estrada à frente e para, finalmente
Conhecer a vida baseada em amizade e amor.
 
Feliz por você, menino
Que já era amado e será, agora, ainda mais.
 
E feliz por você, meu bem
Que já tinha amor em ti, lá dentro, pela vida
E agora abriu a porta e alçou voo
Encontrou um outro amor voando e dançarão
Voarão por esse mundo afora e bem aqui.
 
Feliz por vocês todos
Eu não preciso de mais nada
Tenho no bem de vocês o meu maior presente.
 
Enquanto os enxergar assim, estarei bem.
Enquanto estiver bem – mesmo se doente ou sozinho
Enxergarei vocês assim.
 
E se você, meu bem, não estiver assim, um dia
És a pessoa que escolhi para me dedicar a olhar tão bem
Mas tão bem, que mesmo em tua tristeza enxergarei caminho
Estenderei minha mão e te conduzirei, novamente, para o sol e o mar.
 
Porque desde que te conheci, meu céu, vestindo a noite e uma estrela
Eu me sinto mais sol e mar do que nunca
Você me fez verão, e eu te abraçarei em todas estações da tua vida.

sábado, 28 de dezembro de 2024

O colo

Bom dia, Dona Araucária! Venho aqui, nessa manhã, lhe agradecer pelo acolhimento que me deste ontem à noite.

Quando eu fui sem rumo no escuro, sem nada nas mãos e nos bolsos, com os pés molhados do orvalho e a cabeça mal orientada, a senhora apareceu bem diante de mim e me deu a sombra que eu buscava contra a luz elétrica que desrespeitava a noite.

Mansamente, senti que podia recostar-me no seu corpo. Quando, então, a senhora convidou-me a sentar e, finalmente, a deitar-me no seu colo.

Envolvido assim, pelas altas ciperáceas e capins, sobre os calombos macios da terra forrada pelas ervas, sob as mil estrelas que formavam brincos flutuantes em meio à tua copa majestosa, encontrei minha plenitude.

Ali e daquele modo, desejei viver. Eu dormiria exatamente como estava e, na madrugada, acordaria e saberia, pela posição das estrelas, quanto tempo havia passado e quanto ainda faltava para a alvorada. Voltaria aos sonhos até ser despertado por mil pássaros.

Ali e daquele modo, enxerguei: não preciso de mais nada. Tenho o chão, um coração tranquilo e um corpo que funciona para conseguir alimento. Mais nada.

Mergulhei meu rosto no chão, senti o aroma fresco e bruto da tua terra viva que toquei. Dancei minhas mãos sobre as ervas, com carícias úmidas sobre as linhas delicadas das suas fibras.

Não queria ir embora. Resisti. Me deitei de lado, quase adormeci. Eu não poderia sair assim, simplesmente levantar-me e ir. Então, sentei-me e, com quarenta expirações e inspirações, me despedi.

Agora, olhe em minhas mãos: essas duas pedras representam dois lindos seres a quem quero apresentá-la. Vamos nós - a senhora, o chão e o céu - relembrá-los do quão pouco eles precisam.

E é precisamente por não precisar de quase nada que quase tudo é especial: porque escolhemos. Quero viver ao lado deles assim, por escolha, não por necessidade, e os relembrando do mesmo, que não precisamos de quase mais nada além de chão, alimento e amor.

Permita-me, então, encostar agora as pedras do compromisso com meu coração no seu corpo e no seu chão para trazer tua sabedoria ao meu peito. 

E que eu possa levá-la aqui dentro para enquanto longe, dizer: "o colo da araucária é onde está meu corpo". Obrigado. Voltarei.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

O ar toca a água e vira água 
A ave caminha
O gato se afasta
A árvore fica
Na manhã lenta, branca e fria.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Gosto de não fazer nada
para poder pensar muito.

E gosto de pensar muito
para poder não pensar nada.

E gosto de não pensar nada
para poder contemplar muito.

Mas para poder não fazer nada
é preciso, primeiro, fazer muito.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

A rosa

Ninguém é de ninguém.

Mas você deveria pertencer ao lugar mais elevado de jardins feitos em colinas sobre as nuvens de uma terra distante onde habitariam deuses jardineiros que lhe venerariam como a última flor da espécie. E eles não lhe tocariam nem lhe olhariam diretamente durante o dia para não cegarem, tão forte é a luz do mundo todo que é capaz de refletir em suas pétalas e tão profunda é a lança dos seus olhos se adentrasse os olhos deles que, então, perfurados fatalmente, perderiam sua deidade e se converteriam em mortais, camponeses condenados a sofrerem de desejos, desejosos de morrerem para não sentirem mais paixão tão grande e avassaladora pela rosa inalcançável, intocável e inalienável do jardim que, na verdade, então veriam: nunca havia sido deles.

Mas, sabendo olhá-la bem, do jeito certo - à noite ou, se de dia, pela margem da visão - poderiam sentar-se numa pedra e contemplá-la. Quando assim - serenos, respeitosos e sem avidez - você lhes presentearia com o aroma das palavras gestadas no cosmo do seu coração. E seria dessa forma que eles, deuses secretamente instruídos, poderiam transmitir toda a graça e a sabedoria - filhas da beleza de uma rosa - para a humanidade.

terça-feira, 24 de dezembro de 2024

Minha fé

Existe o bem
e existe o engano.

Existe o belo e a cegueira.
Existe o amor e a delusão.

Existe o bom demais pra ser mentira 
e o ruim demais pra ser verdade.

Ao sábio "... se não deu certo é porque ainda não chegou ao fim", de Sabino, acrescento: ou porque você não viu que já está certo.

Felicidade é aceitação 
que vem depois de uma visão correta.

Se algo lhe parece mal, errado ou feio
olhe de novo e de novo e de novo
De outro ângulo, mais de perto
Mais de longe. Mova-se! Pare.

O belo é a aparência do bem, da verdade.
Perseguindo o belo, se alcança o bem.
E o bem é o particular conforme a talidade.

Praticar o bem é, portanto, agir em harmonia
com as coisas como são de fato - uma.
Eterno é o todo, e tudo dentro é passageiro.

E, finalmente: amar alguém é o sentimento decidido e a prática do esforço para o mais constante e primaz assassinato de uma delusão - a de si próprio - com o intento último de lhe fazer o bem.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

De azul, eu sou apenas olhos 
Duas pequenas íris 
Tuas discípulas-guardiãs.

Mas, você 
Você, meu bem
Você é todo o céu
Que dá vida ao arco-íris!

sábado, 14 de dezembro de 2024

Tua fé

Por detrás da dor, da tristeza e complacência
Como na tua foto em preto e branco
Teu sutil sorriso, quase oculto.

Do outro lado das pupilas, da retina, no pensante
Em meio ao sangue, atravessando o coração
Você sempre soube o muito mais que havia.

Você sempre soube que através dos céus
Aqueles pássaros voavam de um lugar
Para algum lugar melhor, em tempo.

Você sempre soube que além do horizonte escuro
O sol não nasce ou morre, muda apenas de lugar
Banha as almas frias e ilumina o mar. O mar!

Você só voa agora porque sempre soube
Como os pássaros que vão, sem ver o destino
Porque sabem seu rumo e são sedentos pela vida.

O teu vôo é lindo, belo como se uma chuva 
Adquirisse cores e se rebelasse num ballet
E aqui, nessa ilha, antes do inverno há de pousar.

Eu já descobri o que há de mais bonito em ti 
É tua fé, que move as asas e esse coração pulsante 
E quando livre e confirmada, aclara em teu sorriso!

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Bom dia, céu azul!
Luz amarela!
Todas as cores!

Menina de preto!
Olhos castanhos!
Mar de todos meus amores!

terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Oi
Eu vou aí
Aperto o interfone e tu desce
Saímos correndo, correndo até cansar
Paramos no primeiro café ou bar
No primeiro banco ou num sem banco à beira-mar
Molhados de suor e chuva, ofegamos, rimos
Encontramos música em algum lugar
Curtimos e de pé, feito bêbados bem lúcidos, dançamos.

Tô na vibração do super andarilho, nessa essência
Adeus estranho, pega o rumo de casa, canta a canção lógica
Um café da manhã na américa, do sul! Conquistaremos essa ilha
Saltando cada meio-fio, pisando em cada poça
Sentando em cada pedra e se largando em cada praia.

Me dá a mão, que agora é caminhada
Ei, quer ser minha namorada?
Sei que já pedi tua mão, mas, até lá
Quer ser minha namorada?

Tem um show legal à noite, está cansada?
Eu alugo um quarto, olha só o tamanho dessa cama
Desabe, tome um banho e se desabe, depois eu
Durma e vamos, que essa noite é nossa.

Minha nossa! Como é linda... 
Posso dar um beijo aqui, nesse canto do teu rosto?
Olha a minha namorada
Ela é a única que eu quero nessa vida que me resta.

Na na na na namorada
Na na na na namorada
Por que dizer tchau, e não só um até logo?
Até a próxima volta, até a próxima dança.

Na próxima eu te levo até Montevidéu.
Ei, posso dormir aí?

sábado, 7 de dezembro de 2024

Avessos campestres

O habitante que parte e a casa que fica
A pequenez herbácea e a araucária
O tão longe do horizonte e o chão
O calor da hospitalidade e o frio
O abandono e a preservação
Os campos da coxilha rica.
Na coxilha rica de horizontes, sempre à vista
Como não se ver imerso em imensidão
E não achar a solidão bonita?

Ondulado e pisoteado, doura verde o chão
Integrando a araucária ao gado e à gente
Preservando entre as taipas, anos.

Ainda se vê em campos serranos
Seu veado campeiro e sua tropeira, a patativa
Leões baios, siriemas, graxains e gaviões.

Muda a luz, vê-se novas flores que já estavam
Bacurau que era dormente, agora aviva
E anoitada, sua penada alma alça vôo.

domingo, 1 de dezembro de 2024

Eu preciso colocá-la em partes do meu dia
Escrevendo, lendo, ouvindo, a pensando...
Porque só assim eu vivo a realidade 
Que, na minha, tem ela.

Será mesmo?
Colocá-la onde ela não está não é justamente o oposto?
Não é se esvair da realidade presente, dela ausente?

Sim, eu disse errado.
Eu preciso colocar o amor que tenho por ela em partes do meu dia.
Preciso espalhá-lo ou plantá-lo ao longo dos canteiros e ponteiros dos meus dias.
Agora sim. Porque só assim eu vivo a realidade
Que, na minha, tem o amor por ela.
Mesmo se não tem ela.

Quem ama não sabe viver sem amar.

O amor é como aquele meu primeiro sonho com ela
Em que "nos trancamos" do lado de fora, "dentro" do pátio, pra ficar a sós, brincando um com o outro. 

Amar é ser incapaz de não ser feliz.

É um sair-se que não quer mais voltar.
É um trancar-se fora de si com quem quis o mesmo.
O amor é esse pátio da vida.
É limitado, em volta, porém aberto, em cima.
Tem coisa que tem hora certa pra ser.
Quase tudo.
Ou tudo.
Ou...
Nada?
Tudo tem, sim.
Mas só depois que já aconteceu.
Porque tudo que já aconteceu é certo.

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Raios

Ontem, na volta 
Com tormenta armada
Antes que a chuva caísse
Supliquei ao céu tenso, elétrico 
Que um raio partisse essa corrente
Que ninguém solta, e que ele partisse
Libertando os três do passado
Para que viver hoje possa
Ser hoje plenamente
E não aquém.

Mas isso foi antes que a chuva caísse
Diluísse e lavasse as águas
Aliviasse as tensões e
Derrubasse o pó
Madrugada
Agora, que amanheça
Mas que eu antes durma
Conseguindo, enfim, despertar
E que os raios a agirem sejam de sol.

domingo, 24 de novembro de 2024

Hoje, quando pensava na ausência, Mestre Caeiro me lembrou: preciso vê-la para pensá-la verdadeiramente. Como preciso ver a água para pensá-la verdadeiramente. Ou seja, sem pensá-las.

Porque agora, na ausência dela, se penso nela, tudo que pensar serei eu, o que sinto, o que lembro, e não mais ela.

Quando apenas penso, sem ver, é uma grande pobreza de tudo e um excesso de mim.

É por isso que é tão bom estar ao sol ou sobre ou dentro d'água, ou diante dela.

Na ausência, sequer se pode pensar na ausência, porque a ausência não é uma coisa.

A constatação da ausência nada mais é que um ressaltar de si. Um relembrar-se de si. Por isso é desagradável constatá-la demais.

E é por isso que sinto essa necessidade de estar sobre a água, sob sol, alvejado pelo vento ou com os dedos enfiados dentro do chão. Para descansar de mim. Para ver e sentir, sem pensar. Sem lembrar de mim.

E é por isso que amar é morrer em. Esse tanto querer amá-la para fora - querer ver, dar a mão, ouvir, abraçar, dar carinho e atenção, dançar e contemplar - é a vontade do descanso eterno.

E vai ver que é daí que vem a insaciabilidade da paixão: do constante ressuscitamento de si mesmo.

Viver o amor deve ser uma batalha interminável contra o eu, pela paz, no outro, pelo outro.

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Anoiteceste em mim 
E eu, que estava ao sol 
Pude ver, assim, tua brilhante 
Solitária e branca estrela distante. 

Harmonizamo-nos, enfim 
E eu, que sempre gostei de ser só 
Pude ver, em ti, como nunca dantes 
Como achar na pedra bruta o diamante. 

Comungando versos e conversas 
Ouvindo sonatas, compondo sonetos 
Transmutamos ao bem, pelo belo, a dor. 

Com tua branca luz me conduziste, Diotima 
Ao vale mais íntimo da minha anima 
À morte em plena vida, o amor.

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Como ser triste 
Se o hoje é tudo que temos 
Se o hoje é tudo que existe 
E o hoje é suficiente? 

Se o horizonte que vemos 
Sem saber quão distante 
Já clareia o bastante 
Como não ser contente? 

Não toco o sol, mas o recebo 
E se não vejo, o percebo 
Pelas cores e o calor. 

Não sou triste, então, mas fico 
Faz parte da felicidade que persiste 
Esse, quando me despeço, ficar triste.

terça-feira, 19 de novembro de 2024

É bom lembrar, às vezes, que também somos humanos
Que apesar de todo o incomum, raro e anormal da relação
De nos sentirmos, sem nunca termos enlaçado
Espíritos voantes de mãos, veias, mentes e almas dadas
Entrelaçadas num laço de eterno agora

É bom lembrar que, apesar disso, somos algo mortais e terrenos
Com segurança hesitante, o dizer nem sempre suficiente e claro
Resquícios daquele infante que, no sentido inverso ao fruto
Primeiro cai, depois amadurece e cresce!

Pequena história

Primeiro, eu vi nela a noite 
Linda, misteriosa, distante e serena 
E me apaixonei. 

Depois, eu vi nela a profundidade 
Buscando o bem e a verdade em Platão 
Na filosofia como um todo, no esoterismo 
E a paixão cresceu. 

Depois, eu vi nela a gratidão 
Dirigida justo a mim, tão ninguém 
De um jeito que eu nunca tinha recebido. 

Depois, veio à tona a sintonia, a harmonia 
O crescimento e a descoberta mútuos 
Com as sínteses, vi nela uma mentora 
E o valor único e inédito dessa amizade. 

Foi, pois, nesse solo fértil, pulsante 
Nessas almas conscientes e iluminadas
Que brotou, dos nossos corações, o amor.

Vai

Bem, nós sabemos aonde vamos
Nós sabemos?
Nós sabemos o que somos
Nós sabemos?
O destino é incerto, mas
Bem, ainda assim, nós
Sem saber quem somos, vamos.

Vai, ciclista andante pelo acostamento
Empurra o cansaço com um sorriso
Vai, ambulância, costurando o trânsito
Salva mais essa vida!
Vai, trabalhador de uniforme e conformado
Que a amizade e a piada são tua cachaça que não mata
Explorados, presidentes, cães, mendigos, mães e sacerdotes
Vão! 

Vamos todos juntos que eu também não sei
O que eu tô fazendo aqui, exatamente
Vamos nós, que não sabemos quem somos
Pela via rápida para algum lugar ou nenhum
Para algum lugar em comum.

Ei, menina
Sente-se perdida, com um andar incerto?
Hoje eu não vou lhe dizer de onde vem e para onde vai
Hoje eu vou lhe dizer algo bem melhor:
Todos nós somos, como uma família instável nesse mundo louco
Perdidos
Sinta essa unidade! Estamos todos juntos sem saber, mas juntos
Indo.

Todas as manhãs
O paramédico não sabe muito bem no que vai dar, mas ele vai e resgata
O presidente não sabe muito bem no que vai dar, mas ele vai e manda
O empregado não sabe muito bem no que vai dar, mas ele vai e obedece
O budista não sabe muito bem no que vai dar, mas ele senta e medita
Todas as manhãs.

Essa é a unidade que hoje eu indo me vi parte e chorei
De algo além de alegria
De algo entre euforia e paz
De algo amor sem foco, difuso
De algo assim, confuso e engraçado, leve e profundo
Uma identificação imediata e incondicional com todos
E é libertador saber que em meio a tanta incerteza, vamos
Que todas as manhãs vêm e nos despertam para esse mundo louco.

Vidia

Acho importante estar em sintonia 
porque as noites são para dormir
as manhãs são para acordar
e o dia é para amar e trabalhar 

Mas para amar e trabalhar 
precisa acordar
e para acordar 
precisa dormir

Para viver
precisa despertar 
e para despertar
precisa morrer

Para morrer
precisa viver
e para viver
precisa despertar

Morrer, despertar, viver, morrer...
dia após dia após dia...
até amanhã
boa noite.

domingo, 17 de novembro de 2024

Poema biológico

O mesmo sol
que a erva na cuia
empalidece
a minha pele, cora 

que o solo, seca
a minha pele, sua

me avermelho, até 
que eu sou um vivo diferente 

imigrante já nascido imigrado
um exótico ainda a ser eliminado

já extinto, o mais parente
de macaco, o mais pelado.
Bebo e me banho, lavo-me
embreago-me, tinjo-me
querendo ser mulato
ou índio, no sol 

que eu desde piá gosto de querer ser índio 
desses que andam largados no mato
pisando co'as plantas largas dos pés
e os dedos fortes e abertos

numa combinação misteriosa 
sobre a linha tênue e sabida 
de quebrar os galhos secos
e poupar as plantas tenras.
Quando veio até a minha a tua mão
num gesto de carinho entregue 
quando veio e a segurei 
com carinho dado

sustentamos 
por alguns segundos 
a eternidade que encontramos

resumimos ali todo o dito e
o ainda não.

Folha

Oh, pedaço de ti
oh, pedaço integrado a ti
que me estremece por não me entregar nada
além de ti, pedaço

semivelada e indesvelável
de seu fino e negro tecido
a clara pele

a árvore, a floresta
toda a natureza
numa folha

num pedaço
nu.

Solriso

Eis alguém que gosta de sol...

e se for aquele da manhã de domingo
quando a maioria está dormindo
menos os pássaros e eu
e ele reflete nos tijolos
da casa do vizinho
na minha janela
ao silêncio

e se mistura ao cheiro
e ao gosto do café 
que antecede 
o mate

chega a me puxar os cantos da boca 
um pra cada lado

e algumas vezes
quando não suficiente
escapa até uma risada

e algumas vezes
quando muito contente
escapa até uma lágrima

isso não significa 
que eu não goste da chuva
ou do nublado

pelo contrário!

gosto mais de ver o sol
por haver a chuva e o nublado
e gosto mais de ver a chuva e o nublado
por haver o sol.

anteontem mesmo
meu remédio pr'alma ferida e pequena
foi o cheiro da chuva inalado
que me cantou e abraçou
"está tudo certo e resolvido, boa noite".

afastando de mim a tristeza
e afastando em minha boca seus cantos
(abro um sol).

sábado, 16 de novembro de 2024

Mira, amor, a moura
garça graciosa
na pedra

Mira, amor, o chá
de tanchagem
no chão 

Mira, amor, em mim
onde tu moras
no coração.

terça-feira, 12 de novembro de 2024

Não vivemos
a vida é que nos vive
como água pelas brânquias

E o tempo não passa
nós é que passamos
como água pelas brânquias

Nesse dia do teu aniversário
trinta e oito anos
e os bilhões do universo
louvados sejam
porque te fazem

Nesse dia do teu aniversário
trinta e oito anos
e os bilhões do universo 
louvados sejam
porque te desfazem!

domingo, 10 de novembro de 2024

Majestosa, a vi
a noite em pleno dia
e ao seu lado, o medo.

Já que o medo não tem olhos
com seu braço nada envolve
tenta, mas não a encontra ali.

E da noite, o educado intento
de resposta concedido ao medo
dura menos que um segundo.

Partiu, contra o vento, e então fui
sem oi, que o nosso foi faz tempo
sem tchau, porque já nos moramos.
...

Você precisa sair, minha noite.

Você precisa sair
do lado de quem te teme
do lugar em que já não se encontra.

terça-feira, 5 de novembro de 2024

Transformamos 
árvore em aqui
ave em olá  
ilha em chapéu
pedra em planeta
folha em retrato.

Depois que saímos
tudo voltou a ser o que era.

Insignificantes o bastante 
para apenas significar
preservamos.

domingo, 3 de novembro de 2024

Que beleza me trouxeste ao dia dos mortos
Para cá da ponte que nos une e nos separa
Tu, tão outra, minha nunca minha
Corro pr'onde corres
Me revela pouco
E o toque permitido pelas circunstâncias
Mede não mais que formigas, das menores.

Pousam lá ou ali pequenas ondas
As gaivotas e outras aves
E a tua voz que tão serena não quebranta nada
Todas sendo o amor pousando
Pois, segundo dizem, pousa só no que é suave
E é o que somos nós no matutino.

Nesse dia dos mortos encontramos
E nos encontramos, n'um lugar
Para não debaixo os sete palmos
Mas as sete-copas
Nos morrermos n'outro.

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Na baía do Estreito 
É no chão que encontro o meu melhor assento
De onde espreito me cruzando o olhar, distante 
Uma média para grande embarcação
Que me faz pensar nas canoas, com menor conforto
Mas também com maior liberdade e menos peso
Pequenas embarcações... Como a vida simples
Nem tão pequenas, quando a solidão é obrigatória
Nem tão grandes a gerar preocupações e restringir o movimento
Penso "dois é um bom número".

Na baía do Estreito
Espreito ainda a ilha, a outra margem
Com seus morros mesclados pelo sol e as sombras
Com seus prédios encaixados, onde ela habita
Por detrás de mim passa um bebê, embarcado em colo
Lembro meu desejo, breve instante de cegueira e autocomiseração 
Sinto como um tapa, me levanta a cara, em voz clara
"Morra nos morros. Morra nela"
E isso mais do que me basta para a vida plena
Só o amor desmancha e deixa a luz passar.

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Há algo de errado com o mundo.
Como pode ser que nunca tenham te visto?
Como pode nunca ter se sentido amada?
Era invisível? Um fantasma?
Andava escondida nas sombras? Todo esse tempo?
Não existia e se materializou só agora, para mim?
Não existe ainda e estou sonhando?
Não é possível.

Como pode ter passado assim, sem ser amada?
Não tem nada de especial comigo. Não tenho lentes especiais.
Bastava que te vissem, que te olhassem bem, e veriam o que eu vejo.
Diriam o que eu digo. Desejariam o que eu desejo.
Alguém te abraçaria com o coração que eu tenho agora e encheria o teu de alegria.
Não é possível.

Há algo de errado com o mundo.
Como pode ser que nem aquele que te teve por tanto tempo não a tenha visto?
Não a tenha amado?
É inconcebível.

As pessoas são zumbis?
Esse mundo é um absurdo. Eu não o compreendo.
Eu não estou iludido, estou lúcido.
O mundo é que foi cego. Agora eu sei. O mundo é cego.

Você fez dessas dores tua força, eu sei.
A vida é incrível. O mundo é lindo.
Mas há algo de errado com ele.
Dois grandes buracos vazios no lugar dos olhos.

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Quando adolescente, tive uma revolução. Me vi, de repente, descrente do Deus cristão. A natureza era, finalmente, única. Matéria, energia, vida e mente. Todos eram aspectos da mesma unidade. Alma e deus não eram mais necessários e essa grandeza e simplicidade me proporcionaram um alívio chocante e libertador.

Quando conheci o zen, tive uma segunda revolução. A unidade e a contemplação da natureza não eram mais domínio apenas da ciência e da poesia. Além de abandonar a ideia de um deus, aprendi a importância de abandonar a ideia de um eu e de qualquer identidade separada nas coisas, bem como o caminho para esse abandono, que era o mesmo caminho para o fim do sofrimento, para o despertar.

Vivi assim. Até hoje.

Algo havia ficado de fora dessa síntese, no entanto. Pensei algumas vezes em perguntar ao sensei coisas sobre o amor e a paixão, mas me repreendi. Parecia-me algo deslocado. O mais próximo que eu chegava de relacioná-los era na ideia da compaixão budista, do altruísmo. Paixão para mim era vício. Já amor, um conceito meio vago e distante da síntese natureza-vazio que obtive no zen.

Hoje de manhã, ao fechar o livro após a (re)leitura que você me proporcionou de um trecho do meu próprio livro, Agonia do Eros, do Han, tive um clarão. Meu olhos, então, esquentaram e se umedeceram. Novamente um alívio chocante e, dessa vez, acolhedor.

Eu vi o despertar e o amar convergindo para um ponto. Esse ponto era a morte de si. E mais, me dei conta que foi a partir de você, com você e em você que eu aprendia, naquele momento, o que é o amor e onde ele habita dentro do zen e, portanto, dentro da minha visão da unidade vazio-natureza. Foi com o que você me mostrou, foi desenvolvendo junto com você e foi te amando que descobri: "amar é morrer em".

Não é o morrer do mero viver, nem apenas a morte de si, vivendo. É a morte de si, vivendo, mas em algo. Amar o céu é morrer no céu. Amar o todo é morrer no todo. Amar o outro é morrer no outro. Amar você é morrer em você. 

Já a paixão, como sentimento, é energia. E como tal, pode ser canalizada para o bem ou para o mal. Não precisa ser vício.

Essa síntese vazio-natureza-amor me parece definitiva e posso dizer com segurança: te conhecer foi minha terceira revolução. Esta é, hoje, minimamente a altura em que te vejo nos acontecimentos da minha vida: a mesma da minha espiritualidade.

Eu jamais achei que aos 38 anos alguém que conheci há menos de quatro meses me ensinaria o que é amar e o que é paixão e como isso se integra à minha espiritualidade não teísta que permeia tudo (ou quase tudo, até então) na minha vida. Te conhecer teve o impacto de conhecer um mestre.

Independente do que nos acontecer, se ficaremos juntos ou não, você será sempre minha terceira revolução, e mais: a única em forma de pessoa. Aquela que me cativou e ressignificou o amor para dentro de todo o resto que realmente importa.

Hoje, 21 de outubro de 2024, não me falta mais nada, mesmo com tanto ainda por saber. Pronto para viver. Pronto para morrer. Pronto para amar.

E o visto foi dito - olhando nos olhos, frutas silvestres, limão com gengibre - e o dito foi escrito. E tudo isso aconteceu precisamente no dia em que me entregou, ali na mesa do chá, "O Banquete" de Platão. Um livro sobre o quê? Eros, deus do amor. Eternamente grato, Rafa.
...

"A experiência erótica abre o acesso à continuidade do ser que só poderia ser edificado definitivamente pela morte dos seres descontínuos" (Byung-Chul Han).

domingo, 20 de outubro de 2024

Pedaços do espírito ocultos de nós mesmos vieram à tona quando conhecemos um ao outro e nos vimos.

Sentimentos ocultos um do outro vieram à tona quando nos abrimos para o outro, e seguiram ocultos aos demais.

Conversas ocultas de nós mesmos vêm à tona em nossas conversas, ocultas aos outros.

Nosso relacionamento ocultista, tentando revelar o amor-luz pelas frestas.

Enquanto as janelas e portas, destrancadas, balançam no vento possível.
Hoje um deus nasceu, e ele é bom
E eu continuo lavrando a terra com o arado ateu
Rezando a oração natural - a atenção.

Não largarei tudo das mãos 
Não trocarei essa roupa velha e surrada
Que amo desde criança 
Nem abandonarei meu campo
Para, mudado, ir à igreja longe e louvar.

No entanto, cada semente, agora
É colocada individualmente no solo
E a terra por cima
É esparramada e apertada mais suavemente
Tenho as mãos mais amorosas por tudo
Por cada verme, cada húmus, cada palha e cada pó.

E enquanto não chover, tudo bem
Tenho agora uma nascente e um regador
Cada planta que nascer será alimento 
Nosso amor 
Para os dias mais difíceis e os felizes 
Para as horas de paz e tormenta.

Sempre conscientes de que tudo é fugaz
Que o que importa é o movimento 
Nosso amor
Que se propaga pelos músculos de todo tipo
Do cardíaco ao das cordas vocais 
Passando pelo abraço e pela mão que estende.

Deus que me perdoe, se quiser 
Mas quando eu levo as mãos ao céu 
Quem eu louvo, na verdade, é ela
É por ela a minha mais bonita reza de atenção.

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Ciclo

Minha noite 
Minha lua 
Minha estrela
Minha nuvem
Meu raio de sol

Só não me és mar
Porque eu preciso de um lugar 
Para quando você não me amar
E esse lugar é o mar

O céu é teu
E o mar é meu
O céu é você e eu sou mar
Sem tocar me ilumina, reflito

Sem cor, mas azul 
Se fores azul
Sem luz, mas com brilho
Se assim for a lua
E escuro se fores nova

Mas, se algum dia quiseres me amar
Se um dia puderes me amar...
Que chova 
Que chova!

Vai chover quando chover, onde chover
E talvez por algum rio o amor virá
Nós transcenderemos céu e mar
Porque o meu ascenderá em vapor.

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

O futuro é um grande deus morto
Que é constantemente renascido e assassinado
Renascido e assassinado, renascido e assassinado.

Apartado da matança, vou lidando aqui na terra
Lavrando-a com o arado ateu
No intervalo da labuta, trago o sol e cuspo letras
Para que não sobre em mim nenhum conceito.

Hoje o sol veio sem filtro, puro como aguardente
Agora só me faltam uma canoa e uma ilha
Pra que eu nela vá atracar e ser bicho
Oculto aos olhos desses deuses 
Surdo de qualquer vidente.

Isa de Sorriso

Ela diz que vai voltar, que aqui só chove.
Que as pessoas não são boas, olham torto.
Vejo quase tudo azul, mas não a julgo.
Minha vida foi mais fácil.
O Sorriso dela ficou lá no Mato Grosso.
Eu preciso dormir
Pra chegar no amanhã 
Abrir as cortinas e os vidros
Com suas doses de realidade
Seus baldes de água fria ou morna
Arcar com as respostas das perguntas
Sejam quais forem, que lavem meus olhos
Removam essa crosta de esperanças vagas
Limpem no ego as feridas, ciumentas e pobres
Permitam que eu veja no agora a beleza restante.

O que me conforta nessa noite
É o aroma do incenso do templo
Que me remete ao dharma e à sangha
E essa música alegre, la belle de jour.

Me conforta também uma fé bem modesta 
Que o dia que nasce amanhã vem com ela
Cruzaremos mais alguns olhares e sorrisos
Cheios de vontade e carentes de certezas.

Dentro do segundo, fora de si mesmos
Nosso olhar é suficiente e não tem dúvidas
Toda dúvida pertence ao tempo, que não temos
Nus do tempo e de si mesmos, temos tudo.

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Receita-roteiro para a alma-escrita

O que aconteceu
Como me senti
Transmutação do sentimento
O que realmente importa.

domingo, 13 de outubro de 2024

Sou um homem que tem pouca esperança e pouca ambição.
Às vezes tão poucas que parecem pessimismo e conformismo.
O outro lado da moeda é que tenho bem desenvolvidas a resiliência e a aceitação.
Meus lutos são curtos. Às vezes tão curtos que parecem indiferença.
E às vezes são, já que tenho uma noção de escala. Vejo a pequenez do que é pequeno.
Sei perder, principalmente o que eu nunca tive.
Lido com a dor ao meu modo: escrevo. 
Encaro ela de frente e a disseco. Dói na dor, então.
Meto o dedo na ferida com propósito de ver lá dentro a cura. Sintetizo e a transmuto.
Por tudo isso, sou visto geralmente como alguém tranquilo e, portanto, tranquilizador.
Não sou bom em confortar pela empatia, por meio de sentir ou perceber a dor do outro. 
Mas dizem que sou bom em acalmar, porque transmito paz no jeito e nas coisas que eu falo.
Escrevo tudo isso por notar como é engraçado como as coisas se combinam: a minha quase indiferença e as poucas esperança, empatia e ambição - que às vezes machucam - por suas faces de tranquilidade, aceitação, resiliência e contentamento fácil, outras vezes, são fontes de conforto e cura.

Despertar é desapaixonar-se

Quando eu tinha alta a esperança
Levava ao alto os braços para receber o sol e o vento
Quando ela baixou, despencaram-se meus braços que pesaram, com pesar
Desmanchou-se algo no peito.
 
Eu não quis levar tristeza até a lagoa nem ao mar, para não contamina-los
Deixei que eles ficassem lá com sua alegria pura
Sem meus olhos temporariamente tristes do encanto manchado
Mesmo eu sabendo que o encanto é que é uma mancha sobre as córneas.
 
Despertar é desapaixonar-se pelas coisas separadas - o outro ou você mesmo
Ou apaixonar-se pelo todo, amar a tudo igualmente, o que dá no mesmo
A paixão é a extinção do meio-termo: ora é dor, ora euforia, e nunca suficiente
Despertar é extinguir seu fogo dos desejos, e então serenar, contente.
 
Não estou desperto. Estou no meio da fumaça, entorpecido
Sei tudo: sei de Lídia, do que não seria tanto se não fosse apenas
Sei de amar sem receber, sei da pequenez das coisas, sei do bem maior
Mas saber não é viver. Quem apenas sabe tem um mapa em mãos e não caminha.
 
Despertar é desapaixonar-se pelo pouco, ou ver com-paixão a tudo
É uma indiferença alegre e compassiva de quem sai de cena, extingue-se
Não vou te desver, então, nem me desapaixonar. Vou desver a mim.
Até que, des-manchado como a areia fina, possa ser o chão de qualquer um.

Desmanchar-me em fina areia
Amar a tudo e ser soprado pelo vento
Banhado pela chuva e pisado pelos bichos
Por raízes transpassado. Pelo sol iluminado.

Desmanchado como a areia fina, possa ser teu chão
E moldar-me ao jeito que quiser andar
Para onde e para quem, com quem
Se quiser deitar.
...

Não era chuva lá no céu a vir, mas um pássaro a voar
Sem tocar, deste ao mar que estou tua cor e o canto.

Nessa ilha que formou-se do conhecimento que sedimentamos - a amizade
Sobre a areia fina que me faço chão
Sempre encontrarás a paz e pouso.

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Estratigrafia (circular) da paixão

A esfera da atração, a mais volátil 
é feita de ar.

Que vibra a partir das batidas cardíacas
e flui através dos suspiros ardentes.

É a esfera que sente, etérea.

A esfera da expressão, intermediária
é feita do som e da luz das palavras.

Do dito e do escrito
de olhares cruzados.

É a esfera que lança e alcança.

A esfera da realização, a mais densa
é feita de pele.

Da mão que se estende, segura e afaga
que dança.

Da pele que toca, que aquece e que sua
na sua.

É, pois, novamente
uma esfera que sente e etérea.

De dentro para fora se adensa
se as percorre e se volta.

Três esferas, uma essência.

terça-feira, 8 de outubro de 2024

sua foto
sustenta um
segundo em
seu dedo

sua luz tão 
sutil que em
segredo
seduz.

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Peri

Desliza a caninana calma, saciada
Pousa e repousa um bando de biguás
Dança nos meus pés vanessa, a borboleta
Imerge enquanto nada a capivara, tímida.

Cerca-me de liberdade, essa lagoa
Guardada pela restinga.

Areia que se molda ao corpo
Sol que aquece
Vento afaga
Sombra que adormece.

Lá no alto, vejo a casa onde me retirei
Para dias de silêncio, esforço e harmonia.

Eu amo esse lugar!

Pasma, a mente tenta explicação 
Mas por que tanta alegria? De onde vem?
E a resposta é "cale-se e respire", apenas
Feche os olhos e abra o coração.

Este não é um lugar que se explica
Estar nele, plena e verdadeiramente
É a resposta em si.

Chega a ser até um pecado
Desejar ter algo mais aqui, no paraíso
E esse é, na verdade
O único pecado em te querer.

À Lagoa do Peri, peço perdão.

Conhecendo a sua lenda
Creio que o terei.
...

Peri foi um índio que se apaixonou perdidamente pela bruxa Conceição. Amor proibido, encontravam-se na mata às escondidas.

”Onde já se viu, nossa bruxa andar sem roupa com aquele bando?!”, diziam as bruxas.

“O Peri voando por aí?! O lugar dele é na terra, aqui no mato!”, diziam na tribo.

Maldição lançada, Peri é transformado numa lagoa. Inconformada, as lágrimas de Conceição, salgadas, se acumularam e formaram outra lagoa.

Mas o laço entre os dois era tão forte que Peri moldou-se em coração, para que ela sempre sinta suas batidas, seu amor por ela. 
...

"A sensação do belo não é outra coisa do que o desejo de harmonia das possibilidades de conhecimento" (Byung-Chul Han).

sábado, 5 de outubro de 2024

Temos quase a mesma idade
Histórias diferentes, nossas vidas
Nossos corações, nem tanto.

Será que, em algumas noites
quando adolescentes
nós olhamos para o céu
ao mesmo tempo?
Para a mesma estrela?
Era teu olhar, lá, refletido?

Convergências...

Nossa velha amiga, a solitude
que nos confortava, silenciosa
terá sido ela quem intermediou o encontro?
E agora, olharemos para o céu noturno
novamente ao mesmo tempo
mas do mesmo ponto?

Se assim for
me será difícil distingui-las, tu e a noite
mas a dúvida não nos será problema.

Com um abraço
envolverei as duas
e nós três seremos um.

Como sempre.

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Você subiu tudo
até o alto da montanha 
para ver o sol, bem mais alto do que as nuvens
então, ontem, foi um dia plenamente iluminado.

Hoje, você finalmente se atirou
com a luz que lhe restou, você é livre agora
e ninguém nem nada, muito menos eu
pudemos segurar-te, e nem devemos.

Eu estou embaixo, aqui no mar
e te ver caindo assim, desnuda 
é ao mesmo tempo doloroso
e admirável, tua coragem

Flutuando n'água 
vejo tu se aproximando 
como gota d'uma doce chuva
para o mar azul, sereno e vasto

Não sabemos quanto dura a queda
não pretendo achar que sei tua dor
deixe que o ar corra no teu rosto
que das lágrimas lhe deixe apenas traços.

Traz tua luz sagrada 
que eu a guardo, a cuido em ti
com meus braços bem abertos e estendidos
eu te aguardo!

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Sei que tu não és perfeita 
Mas espinhos são defesas, não defeitos 
Cada um tem seus motivos
E eu respeito.

Sei que tu não és perfeita 
Mas não há quem não mereça ser feliz
Não é algo que se ganha, recompensa
É uma jóia bem pequena, no seu bolso.

Sempre esteve ali
Põe ela no peito!
Hoje transcendemo-nos
nossas individualidades e desejos
que expressamos em segredo
nós subjugamos.

Lembra aquele ponto no horizonte
que fitamos lado a lado?
o bem, o todo, o belo?
ele foi se aproximando enquanto andamos.

Nossas linhas, nas conversas
dos olhares até o ponto
convergiram, convergiram
até que nos vimos.

E, lá dentro d'outro
ainda estava o ponto
o bem
o todo
o belo.

É tão fácil distrair-se nos teus olhos
na tua voz
é tão fácil se perder no nevoeiro
ou na noite
e esquecer que o sol persiste
em nosso centro 
lá no alto ou d'outro lado
do horizonte.

Mas, nós combinamos:
se nas íris de eros
esse ponto do horizonte também mora
manteremos nosso foco nele
e não no encanto
porque encanto passa
porque é raro de encontrá-lo ali
onde achamos.

Que a intenção do enlace
se por vez se passe
seja a paz.

Que fitemos, sim, as íris
porque é bom
mas jamais surdemos
ou ceguemos
para o rio que passa
diante delas
e através.

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

 


Pedras sentam na baía, iluminadas
Nato esquecimento
Um barco que as pretende, oscila
Acúmulos de paz.

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

O andarilho e a casa

Sempre gostei de, caminhando, olhar as casas, seu pátio, as janelas, sua relação com a rua. E nelas pensar como seriam, foram, são, as vidas e infâncias. O cotidiano. No trajeto que escolhi para ser a consolidação da tarde, há várias dessas em que vejo tais histórias. Em uma, imagino a criança brincando depois da escola. Em outra, imagino uma família visitante chegando de viagem, com as malas, pela porta da frente, pra passar uma semana, tomando café e conversando e jantando agradavelmente com os familiares anfitriões. Tem uma que eu não consegui imaginar nada. Sua arquitetura é bem bonita, criativa, rica, mas, faltava essa emanação dela, que eu não sei dizer. Faltava esse indizível que até uma outra, de madeira e abandonada, tinha. Quando as pessoas se foram dessa, ficou ali essa coisa sozinha, no mato, no pátio, na relação com a rua. Estava lá sem uso, o possível. Então, essa coisa não é calor humano e presença, apenas. Tem mais a ver com histórias, mas nos dois sentidos: passadas e possíveis. Ainda que não se realizem, é algo da casa. Compreendi aquelas casas ou apenas projetei-me nelas? Olhei com sorriso e atenção. Se projetei algo, foi compaixão. Demorei-me em cada, ainda que em segundos. É assim que pretendo olhar pra tudo. Aquela que faltava o algo poderá ainda tê-lo, pensei, não é difícil. Luz. Grama. Flor. Gato. Infância. Cão. Visita. Gratidão. É assim que quero olhar para as pessoas. Olhei para dois cães e desejei que recebessem carinho e atenção de suas famílias. Passei por uma jovem mãe sentada com seu bebê e pensei que ela dá todo o amor que recebe e não recebe. Pessoas. Casas. Eu estou bem e muito, obrigado. Minhas angústias, reconheço cada vez mais sua pequenez. Estou pronto para dar carinho e atenção com olhos, voz e mãos.

Se, algum dia, você não radiar mais essa luz que emana e que reflito, não se abale. Inclinarei-me para refletir mais luzes em tua direção. Serei um espelho oblíquo pra você. Já aprendi a te olhar e eu não sei desaprender. Hoje, abro os braços e recebo tuas palavras como raios de sol. Como as casas do caminho, eu não sei tua história, mas eu vejo um lar sereno e encantador, onde pode-se deitar na rede, demorar-se lendo, tomar chá no banco do jardim florido e cantar baixo para a noite à luz de velas. Na sua rua eu passo e digo: hoje o céu está estrelado, vem dançar? Ou apenas deito-me no chão e dou boa noite. Porque até a tua calçada é aconchegante.

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Bem te vi, manhã!
Me arrancaste de casa e de mim.
Me banhaste de brisa e de cantos.
Te sou. Me somos.
Gratidão.

terça-feira, 24 de setembro de 2024

Transentir

Às vezes, meus olhos são pra dentro
afundados no que eu sinto
ou quando longe, ilhados
pairam na paisagem da memória.

Nesses dias, caminho e não vejo nada fora
e as casas e jardins olham pra mim "como um girassol..." que me seduz.
Um cachorro até que olhou como cachorro
mas, me vendo, entendeu tudo e desistiu o latido, por achar que eu não ouviria.
Caminhei, mesmo?

Às vezes, minha alma é do lado de fora
na pele, nas narinas e retinas
e o vento, o cheiro e a luz, tua luz 
são-me os próprios vento, cheiro e luz.
E agora dentro, fogo extinto?

Mas, se aprendo a ser criança
e a dançar de mãos com o céu e a terra
e a deixar que o vento, o cheiro, a luz
e o chorar e a chuva
molhem não só pele e chão, mas o que eu sinto
e que o que eu sinto saia e molhe a chuva
e que essa chuva que eu molhei te molhe
então, no encontro, nada apaga
nada paira e nada afunda.

E o sentido assim sai como um cão banhado
se chacoalha, te respinga e rimos.

É preciso que uma entre e outra saia 
se transpassem, que se alcancem
porque é nesse encontro que ela nasce.
A beleza eterna e una, que transmuta, dança.

domingo, 15 de setembro de 2024

Acho importante estar em sintonia.

Hoje, por exemplo, um dia cinzento e solitário. Meu almoço combinava bem o amargo das fibras com o tempero azedo e a ausência de gordura. Nem parece que botei sal. Ainda bem. Parecia catado do chão (da floresta, não da cidade, o que não é tão ruim). E o vinho, então, harmonizou perfeitamente. Era velho.

Mark Knopfler acompanhou com sua nova canção estilo velho Cash, enquanto Brendan Perry memorava coisas tais como: filhos do sol, do mar viemos, sacrifícios para elementais e, na cabeça, girassóis.

Na remada da manhã, constância e consistência até alcançar um não lugar, mas o cansaço, e sustentá-lo. Chegando no meio do nada, deve-se voltar.

Me senti bem depois da remada, da música e da comida amargas. Mas aqui dentro ainda tento acertar o ritmo e a vida não é carreira solo.

Experimento o que me ensinam Buda e Ricardo Reis. Mora ali a resposta? Ou seria o blues? Não sei. Tenho percorrido um mar de morros. Agora nesse vale fundo morreremos sós, céu, monotônicos?

Encarei a parede e adormeci.

(Em segredo, um pássaro cantou)

...

Em segredo, adorava uma divindade. Expressava diária e monologamente o desejo de ter com ela para longas conversas, ouvir sua sabedoria e receber diretamente amor. Naquele dia, finalmente, lhe apareceu. Vestia a noite e uma estrela, daquelas que só aparecem na visão periférica, então não lhe podia olhar diretamente. Sobre as elevadas expectativas, no entanto, derramou-se um balde d’água fria de secura ardente: “VEJA! NÃO SOU. LIBERTE-SE!”. Desapareceu.

Arrasado, saiu para lugar nenhum pisando sobre nada e tropeçando em verdades, levando-o inevitavelmente a cair no vazio. Tentava agarrar-se em algo, em vão.

Entediado pela queda interminável, tirou do bolso um velho guia físico-espiritual constituído de uma página onde estava apenas representado um barbante na vertical e, de cada ponta, abriam-se universos (d)e conceitos. Pela primeira vez, então, experimentou virar a página sem sair da folha, já que era a única. O resultado da mudança de ângulo para a nova dimensão foi ver que o barbante era, em realidade, uma circunferência em que as duas cosmopontas se ligavam, de modo que uma aparente oscilação para cima e para baixo consistia em ilusão gerada a partir de um movimento circular contínuo.

Passou a viver sob essa “cosmocircunvisão em queda livre” e compreendeu como era possível ser feliz e triste ao mesmo tempo. Que a beleza não era uma qualidade das coisas, mas um impulso para a transmutação dos sentimentos. Aprendeu a amar sem receber e a reconhecer o que não poderia ser tanto se não fosse apenas.

Muito espaço-tempo depois, a queda se consolidou: não era chão, mas mar . Tão longe-longa a queda que esqueceu da divindade. Boiando, percebeu e disse: “Ha! Libertei-me de ti!”. Quando, então, de um velho canoeiro, chamado “Seu Divino”, ouviu: “SE VOCÊ PENSA QUE FOI DE MIM QUE SE LIBERTOU, NÃO ENTENDEU NADA”. Suplicou: “Dê-me outra chance. Como posso compreender tudo e libertar-me verdadeiramente?”. “VARRA A CALÇADA”. “Hum... ok. E depois que terminar?” “DEVE DEIXAR QUE SUJE NOVAMENTE E, ENTÃO, VARRÊ-LA”. “Tá, mas... e no intervalo?” “RESTAURAR CAPAS DE DISCOS DE VINIL”.

Já entendendo aonde aquilo iria não chegar, despediu-se e partiu. Dessa vez não em meio ao nada, mas a nado. Parou e, uma última vez, voltou o olhar. Longe e velho se reconheceu, remando. Saltou um peixe.

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Só vestido de ar nascente ou poente
névoa ou poluente
se lhe pode olhar.

Nu, não!

Então, é o sol que imitamos?
(A religião natural, inconsciente?)