quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Raios

Ontem, na volta 
Com tormenta armada
Antes que a chuva caísse
Supliquei ao céu tenso, elétrico 
Que um raio partisse essa corrente
Que ninguém solta, e que ele partisse
Libertando os três do passado
Para que viver hoje possa
Ser hoje plenamente
E não aquém.

Mas isso foi antes que a chuva caísse
Diluísse e lavasse as águas
Aliviasse as tensões e
Derrubasse o pó
Madrugada
Agora, que amanheça
Mas que eu antes durma
Conseguindo, enfim, despertar
E que os raios a agirem sejam de sol.

domingo, 24 de novembro de 2024

Hoje, quando pensava na ausência, Mestre Caeiro me lembrou: preciso vê-la para pensá-la verdadeiramente. Como preciso ver a água para pensá-la verdadeiramente. Ou seja, sem pensá-las.

Porque agora, na ausência dela, se penso nela, tudo que pensar serei eu, o que sinto, o que lembro, e não mais ela.

Quando apenas penso, sem ver, é uma grande pobreza de tudo e um excesso de mim.

É por isso que é tão bom estar ao sol ou sobre ou dentro d'água, ou diante dela.

Na ausência, sequer se pode pensar na ausência, porque a ausência não é uma coisa.

A constatação da ausência nada mais é que um ressaltar de si. Um relembrar-se de si. Por isso é desagradável constatá-la demais.

E é por isso que sinto essa necessidade de estar sobre a água, sob sol, alvejado pelo vento ou com os dedos enfiados dentro do chão. Para descansar de mim. Para ver e sentir, sem pensar. Sem lembrar de mim.

E é por isso que amar é morrer em. Esse tanto querer amá-la para fora - querer ver, dar a mão, ouvir, abraçar, dar carinho e atenção, dançar e contemplar - é a vontade do descanso eterno.

E vai ver que é daí que vem a insaciabilidade da paixão: do constante ressuscitamento de si mesmo.

Viver o amor deve ser uma batalha interminável contra o eu, pela paz, no outro, pelo outro.

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Anoiteceste em mim 
E eu, que estava ao sol 
Pude ver, assim, tua brilhante 
Solitária e branca estrela distante. 

Harmonizamo-nos, enfim 
E eu, que sempre gostei de ser só 
Pude ver, em ti, como nunca dantes 
Como achar na pedra bruta o diamante. 

Comungando versos e conversas 
Ouvindo sonatas, compondo sonetos 
Transmutamos ao bem, pelo belo, a dor. 

Com tua branca luz me conduziste, Diotima 
Ao vale mais íntimo da minha anima 
À morte em plena vida, o amor.

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Como ser triste 
Se o hoje é tudo que temos 
Se o hoje é tudo que existe 
E o hoje é suficiente? 

Se o horizonte que vemos 
Sem saber quão distante 
Já clareia o bastante 
Como não ser contente? 

Não toco o sol, mas o recebo 
E se não vejo, o percebo 
Pelas cores e o calor. 

Não sou triste, então, mas fico 
Faz parte da felicidade que persiste 
Esse, quando me despeço, ficar triste.

terça-feira, 19 de novembro de 2024

É bom lembrar, às vezes, que também somos humanos
Que apesar de todo o incomum, raro e anormal da relação
De nos sentirmos, sem nunca termos enlaçado
Espíritos voantes de mãos, veias, mentes e almas dadas
Entrelaçadas num laço de eterno agora

É bom lembrar que, apesar disso, somos algo mortais e terrenos
Com segurança hesitante, o dizer nem sempre suficiente e claro
Resquícios daquele infante que, no sentido inverso ao fruto
Primeiro cai, depois amadurece e cresce!

Pequena história

Primeiro, eu vi nela a noite 
Linda, misteriosa, distante e serena 
E me apaixonei. 

Depois, eu vi nela a profundidade 
Buscando o bem e a verdade em Platão 
Na filosofia como um todo, no esoterismo 
E a paixão cresceu. 

Depois, eu vi nela a gratidão 
Dirigida justo a mim, tão ninguém 
De um jeito que eu nunca tinha recebido. 

Depois, veio à tona a sintonia, a harmonia 
O crescimento e a descoberta mútuos 
Com as sínteses, vi nela uma mentora 
E o valor único e inédito dessa amizade. 

Foi, pois, nesse solo fértil, pulsante 
Nessas almas conscientes e iluminadas
Que brotou, dos nossos corações, o amor.

Vai

Bem, nós sabemos aonde vamos
Nós sabemos?
Nós sabemos o que somos
Nós sabemos?
O destino é incerto, mas
Bem, ainda assim, nós
Sem saber quem somos, vamos.

Vai, ciclista andante pelo acostamento
Empurra o cansaço com um sorriso
Vai, ambulância, costurando o trânsito
Salva mais essa vida!
Vai, trabalhador de uniforme e conformado
Que a amizade e a piada são tua cachaça que não mata
Explorados, presidentes, cães, mendigos, mães e sacerdotes
Vão! 

Vamos todos juntos que eu também não sei
O que eu tô fazendo aqui, exatamente
Vamos nós, que não sabemos quem somos
Pela via rápida para algum lugar ou nenhum
Para algum lugar em comum.

Ei, menina
Sente-se perdida, com um andar incerto?
Hoje eu não vou lhe dizer de onde vem e para onde vai
Hoje eu vou lhe dizer algo bem melhor:
Todos nós somos, como uma família instável nesse mundo louco
Perdidos
Sinta essa unidade! Estamos todos juntos sem saber, mas juntos
Indo.

Todas as manhãs
O paramédico não sabe muito bem no que vai dar, mas ele vai e resgata
O presidente não sabe muito bem no que vai dar, mas ele vai e manda
O empregado não sabe muito bem no que vai dar, mas ele vai e obedece
O budista não sabe muito bem no que vai dar, mas ele senta e medita
Todas as manhãs.

Essa é a unidade que hoje eu indo me vi parte e chorei
De algo além de alegria
De algo entre euforia e paz
De algo amor sem foco, difuso
De algo assim, confuso e engraçado, leve e profundo
Uma identificação imediata e incondicional com todos
E é libertador saber que em meio a tanta incerteza, vamos
Que todas as manhãs vêm e nos despertam para esse mundo louco.

Vidia

Acho importante estar em sintonia 
porque as noites são para dormir
as manhãs são para acordar
e o dia é para amar e trabalhar 

Mas para amar e trabalhar 
precisa acordar
e para acordar 
precisa dormir

Para viver
precisa despertar 
e para despertar
precisa morrer

Para morrer
precisa viver
e para viver
precisa despertar

Morrer, despertar, viver, morrer...
dia após dia após dia...
até amanhã
boa noite.

domingo, 17 de novembro de 2024

Poema biológico

O mesmo sol
que a erva na cuia
empalidece
a minha pele, cora 

que o solo, seca
a minha pele, sua

me avermelho, até 
que eu sou um vivo diferente 

imigrante já nascido imigrado
um exótico ainda a ser eliminado

já extinto, o mais parente
de macaco, o mais pelado.
Bebo e me banho, lavo-me
embreago-me, tinjo-me
querendo ser mulato
ou índio, no sol 

que eu desde piá gosto de querer ser índio 
desses que andam largados no mato
pisando co'as plantas largas dos pés
e os dedos fortes e abertos

numa combinação misteriosa 
sobre a linha tênue e sabida 
de quebrar os galhos secos
e poupar as plantas tenras.
Quando veio até a minha a tua mão
num gesto de carinho entregue 
quando veio e a segurei 
com carinho dado

sustentamos 
por alguns segundos 
a eternidade que encontramos

resumimos ali todo o dito e
o ainda não.

Folha

Oh, pedaço de ti
oh, pedaço integrado a ti
que me estremece por não me entregar nada
além de ti, pedaço

semivelada e indesvelável
de seu fino e negro tecido
a clara pele

a árvore, a floresta
toda a natureza
numa folha

num pedaço
nu.

Solriso

Eis alguém que gosta de sol...

e se for aquele da manhã de domingo
quando a maioria está dormindo
menos os pássaros e eu
e ele reflete nos tijolos
da casa do vizinho
na minha janela
ao silêncio

e se mistura ao cheiro
e ao gosto do café 
que antecede 
o mate

chega a me puxar os cantos da boca 
um pra cada lado

e algumas vezes
quando não suficiente
escapa até uma risada

e algumas vezes
quando muito contente
escapa até uma lágrima

isso não significa 
que eu não goste da chuva
ou do nublado

pelo contrário!

gosto mais de ver o sol
por haver a chuva e o nublado
e gosto mais de ver a chuva e o nublado
por haver o sol.

anteontem mesmo
meu remédio pr'alma ferida e pequena
foi o cheiro da chuva inalado
que me cantou e abraçou
"está tudo certo e resolvido, boa noite".

afastando de mim a tristeza
e afastando em minha boca seus cantos
(abro um sol).

sábado, 16 de novembro de 2024

Mira, amor, a moura
garça graciosa
na pedra

Mira, amor, o chá
de tanchagem
no chão 

Mira, amor, em mim
onde tu moras
no coração.

terça-feira, 12 de novembro de 2024

Não vivemos
a vida é que nos vive
como água pelas brânquias

E o tempo não passa
nós é que passamos
como água pelas brânquias

Nesse dia do teu aniversário
trinta e oito anos
e os bilhões do universo
louvados sejam
porque te fazem

Nesse dia do teu aniversário
trinta e oito anos
e os bilhões do universo 
louvados sejam
porque te desfazem!

domingo, 10 de novembro de 2024

Majestosa, a vi
a noite em pleno dia
e ao seu lado, o medo.

Já que o medo não tem olhos
com seu braço nada envolve
tenta, mas não a encontra ali.

E da noite, o educado intento
de resposta concedido ao medo
dura menos que um segundo.

Partiu, contra o vento, e então fui
sem oi, que o nosso foi faz tempo
sem tchau, porque já nos moramos.
...

Você precisa sair, minha noite.

Você precisa sair
do lado de quem te teme
do lugar em que já não se encontra.

terça-feira, 5 de novembro de 2024

Transformamos 
árvore em aqui
ave em olá  
ilha em chapéu
pedra em planeta
folha em retrato.

Depois que saímos
tudo voltou a ser o que era.

Insignificantes o bastante 
para apenas significar
preservamos.

domingo, 3 de novembro de 2024

Que beleza me trouxeste ao dia dos mortos
Para cá da ponte que nos une e nos separa
Tu, tão outra, minha nunca minha
Corro pr'onde corres
Me revela pouco
E o toque permitido pelas circunstâncias
Mede não mais que formigas, das menores.

Pousam lá ou ali pequenas ondas
As gaivotas e outras aves
E a tua voz que tão serena não quebranta nada
Todas sendo o amor pousando
Pois, segundo dizem, pousa só no que é suave
E é o que somos nós no matutino.

Nesse dia dos mortos encontramos
E nos encontramos, n'um lugar
Para não debaixo os sete palmos
Mas as sete-copas
Nos morrermos n'outro.