terça-feira, 5 de novembro de 2024

Transformamos 
árvore em aqui
ave em olá  
ilha em chapéu
pedra em planeta
folha em retrato.

Depois que saímos
tudo voltou a ser o que era.

Insignificantes o bastante 
para apenas significar
preservamos.

domingo, 3 de novembro de 2024

Que beleza me trouxeste ao dia dos mortos
Para cá da ponte que nos une e nos separa
Tu, tão outra, minha nunca minha
Corro pr'onde corres
Me revela pouco
E o toque permitido pelas circunstâncias
Mede não mais que formigas, das menores.

Pousam lá ou ali pequenas ondas
As gaivotas e outras aves
E a tua voz que tão serena não quebranta nada
Todas sendo o amor pousando
Pois, segundo dizem, pousa só no que é suave
E é o que somos nós no matutino.

Nesse dia dos mortos encontramos
E nos encontramos, n'um lugar
Para não debaixo os sete palmos
Mas as sete-copas
Nos morrermos n'outro.

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Na baía do Estreito 
É no chão que encontro o meu melhor assento
De onde espreito me cruzando o olhar, distante 
Uma média para grande embarcação
Que me faz pensar nas canoas, com menor conforto
Mas também com maior liberdade e menos peso
Pequenas embarcações... Como a vida simples
Nem tão pequenas, quando a solidão é obrigatória
Nem tão grandes a gerar preocupações e restringir o movimento
Penso "dois é um bom número".

Na baía do Estreito
Espreito ainda a ilha, a outra margem
Com seus morros mesclados pelo sol e as sombras
Com seus prédios encaixados, onde ela habita
Por detrás de mim passa um bebê, embarcado em colo
Lembro meu desejo, breve instante de cegueira e autocomiseração 
Sinto como um tapa, me levanta a cara, em voz clara
"Morra nos morros. Morra nela"
E isso mais do que me basta para a vida plena
Só o amor desmancha e deixa a luz passar.

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Há algo de errado com o mundo.
Como pode ser que nunca tenham te visto?
Como pode nunca ter se sentido amada?
Era invisível? Um fantasma?
Andava escondida nas sombras? Todo esse tempo?
Não existia e se materializou só agora, para mim?
Não existe ainda e estou sonhando?
Não é possível.

Como pode ter passado assim, sem ser amada?
Não tem nada de especial comigo. Não tenho lentes especiais.
Bastava que te vissem, que te olhassem bem, e veriam o que eu vejo.
Diriam o que eu digo. Desejariam o que eu desejo.
Alguém te abraçaria com o coração que eu tenho agora e encheria o teu de alegria.
Não é possível.

Há algo de errado com o mundo.
Como pode ser que nem aquele que te teve por tanto tempo não a tenha visto?
Não a tenha amado?
É inconcebível.

As pessoas são zumbis?
Esse mundo é um absurdo. Eu não o compreendo.
Eu não estou iludido, estou lúcido.
O mundo é que foi cego. Agora eu sei. O mundo é cego.

Você fez dessas dores tua força, eu sei.
A vida é incrível. O mundo é lindo.
Mas há algo de errado com ele.
Dois grandes buracos vazios no lugar dos olhos.

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Quando adolescente, tive uma revolução. Me vi, de repente, descrente do Deus cristão. A natureza era, finalmente, única. Matéria, energia, vida e mente. Todos eram aspectos da mesma unidade. Alma e deus não eram mais necessários e essa grandeza e simplicidade me proporcionaram um alívio chocante e libertador.

Quando conheci o zen, tive uma segunda revolução. A unidade e a contemplação da natureza não eram mais domínio apenas da ciência e da poesia. Além de abandonar a ideia de um deus, aprendi a importância de abandonar a ideia de um eu e de qualquer identidade separada nas coisas, bem como o caminho para esse abandono, que era o mesmo caminho para o fim do sofrimento, para o despertar.

Vivi assim. Até hoje.

Algo havia ficado de fora dessa síntese, no entanto. Pensei algumas vezes em perguntar ao sensei coisas sobre o amor e a paixão, mas me repreendi. Parecia-me algo deslocado. O mais próximo que eu chegava de relacioná-los era na ideia da compaixão budista, do altruísmo. Paixão para mim era vício. Já amor, um conceito meio vago e distante da síntese natureza-vazio que obtive no zen.

Hoje de manhã, ao fechar o livro após a (re)leitura que você me proporcionou de um trecho do meu próprio livro, Agonia do Eros, do Han, tive um clarão. Meu olhos, então, esquentaram e se umedeceram. Novamente um alívio chocante e, dessa vez, acolhedor.

Eu vi o despertar e o amar convergindo para um ponto. Esse ponto era a morte de si. E mais, me dei conta que foi a partir de você, com você e em você que eu aprendia, naquele momento, o que é o amor e onde ele habita dentro do zen e, portanto, dentro da minha visão da unidade vazio-natureza. Foi com o que você me mostrou, foi desenvolvendo junto com você e foi te amando que descobri: "amar é morrer em".

Não é o morrer do mero viver, nem apenas a morte de si, vivendo. É a morte de si, vivendo, mas em algo. Amar o céu é morrer no céu. Amar o todo é morrer no todo. Amar o outro é morrer no outro. Amar você é morrer em você. 

Já a paixão, como sentimento, é energia. E como tal, pode ser canalizada para o bem ou para o mal. Não precisa ser vício.

Essa síntese vazio-natureza-amor me parece definitiva e posso dizer com segurança: te conhecer foi minha terceira revolução. Esta é, hoje, minimamente a altura em que te vejo nos acontecimentos da minha vida: a mesma da minha espiritualidade.

Eu jamais achei que aos 38 anos alguém que conheci há menos de quatro meses me ensinaria o que é amar e o que é paixão e como isso se integra à minha espiritualidade não teísta que permeia tudo (ou quase tudo, até então) na minha vida. Te conhecer teve o impacto de conhecer um mestre.

Independente do que nos acontecer, se ficaremos juntos ou não, você será sempre minha terceira revolução, e mais: a única em forma de pessoa. Aquela que me cativou e ressignificou o amor para dentro de todo o resto que realmente importa.

Hoje, 21 de outubro de 2024, não me falta mais nada, mesmo com tanto ainda por saber. Pronto para viver. Pronto para morrer. Pronto para amar.

E o visto foi dito - olhando nos olhos, frutas silvestres, limão com gengibre - e o dito foi escrito. E tudo isso aconteceu precisamente no dia em que me entregou, ali na mesa do chá, "O Banquete" de Platão. Um livro sobre o quê? Eros, deus do amor. Eternamente grato, Rafa.
...

"A experiência erótica abre o acesso à continuidade do ser que só poderia ser edificado definitivamente pela morte dos seres descontínuos" (Byung-Chul Han).

domingo, 20 de outubro de 2024

Pedaços do espírito ocultos de nós mesmos vieram à tona quando conhecemos um ao outro e nos vimos.

Sentimentos ocultos um do outro vieram à tona quando nos abrimos para o outro, e seguiram ocultos aos demais.

Conversas ocultas de nós mesmos vêm à tona em nossas conversas, ocultas aos outros.

Nosso relacionamento ocultista, tentando revelar o amor-luz pelas frestas.

Enquanto as janelas e portas, destrancadas, balançam no vento possível.
Hoje um deus nasceu, e ele é bom
E eu continuo lavrando a terra com o arado ateu
Rezando a oração natural - a atenção.

Não largarei tudo das mãos 
Não trocarei essa roupa velha e surrada
Que amo desde criança 
Nem abandonarei meu campo
Para, mudado, ir à igreja longe e louvar.

No entanto, cada semente, agora
É colocada individualmente no solo
E a terra por cima
É esparramada e apertada mais suavemente
Tenho as mãos mais amorosas por tudo
Por cada verme, cada húmus, cada palha e cada pó.

E enquanto não chover, tudo bem
Tenho agora uma nascente e um regador
Cada planta que nascer será alimento 
Nosso amor 
Para os dias mais difíceis e os felizes 
Para as horas de paz e tormenta.

Sempre conscientes de que tudo é fugaz
Que o que importa é o movimento 
Nosso amor
Que se propaga pelos músculos de todo tipo
Do cardíaco ao das cordas vocais 
Passando pelo abraço e pela mão que estende.

Deus que me perdoe, se quiser 
Mas quando eu levo as mãos ao céu 
Quem eu louvo, na verdade, é ela
É por ela a minha mais bonita reza de atenção.

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Ciclo

Minha noite 
Minha lua 
Minha estrela
Minha nuvem
Meu raio de sol

Só não me és mar
Porque eu preciso de um lugar 
Para quando você não me amar
E esse lugar é o mar

O céu é teu
E o mar é meu
O céu é você e eu sou mar
Sem tocar me ilumina, reflito

Sem cor, mas azul 
Se fores azul
Sem luz, mas com brilho
Se assim for a lua
E escuro se fores nova

Mas, se algum dia quiseres me amar
Se um dia puderes me amar...
Que chova 
Que chova!

Vai chover quando chover, onde chover
E talvez por algum rio o amor virá
Nós transcenderemos céu e mar
Porque o meu ascenderá em vapor.

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

O futuro é um grande deus morto
Que é constantemente renascido e assassinado
Renascido e assassinado, renascido e assassinado.

Apartado da matança, vou lidando aqui na terra
Lavrando-a com o arado ateu
No intervalo da labuta, trago o sol e cuspo letras
Para que não sobre em mim nenhum conceito.

Hoje o sol veio sem filtro, puro como aguardente
Agora só me faltam uma canoa e uma ilha
Pra que eu nela vá atracar e ser bicho
Oculto aos olhos desses deuses 
Surdo de qualquer vidente.

Isa de Sorriso

Ela diz que vai voltar, que aqui só chove.
Que as pessoas não são boas, olham torto.
Vejo quase tudo azul, mas não a julgo.
Minha vida foi mais fácil.
O Sorriso dela ficou lá no Mato Grosso.
Eu preciso dormir
Pra chegar no amanhã 
Abrir as cortinas e os vidros
Com suas doses de realidade
Seus baldes de água fria ou morna
Arcar com as respostas das perguntas
Sejam quais forem, que lavem meus olhos
Removam essa crosta de esperanças vagas
Limpem no ego as feridas, ciumentas e pobres
Permitam que eu veja no agora a beleza restante.

O que me conforta nessa noite
É o aroma do incenso do templo
Que me remete ao dharma e à sangha
E essa música alegre, la belle de jour.

Me conforta também uma fé bem modesta 
Que o dia que nasce amanhã vem com ela
Cruzaremos mais alguns olhares e sorrisos
Cheios de vontade e carentes de certezas.

Dentro do segundo, fora de si mesmos
Nosso olhar é suficiente e não tem dúvidas
Toda dúvida pertence ao tempo, que não temos
Nus do tempo e de si mesmos, temos tudo.

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Receita-roteiro para a alma-escrita

O que aconteceu
Como me senti
Transmutação do sentimento
O que realmente importa.

domingo, 13 de outubro de 2024

Sou um homem que tem pouca esperança e pouca ambição.
Às vezes tão poucas que parecem pessimismo e conformismo.
O outro lado da moeda é que tenho bem desenvolvidas a resiliência e a aceitação.
Meus lutos são curtos. Às vezes tão curtos que parecem indiferença.
E às vezes são, já que tenho uma noção de escala. Vejo a pequenez do que é pequeno.
Sei perder, principalmente o que eu nunca tive.
Lido com a dor ao meu modo: escrevo. 
Encaro ela de frente e a disseco. Dói na dor, então.
Meto o dedo na ferida com propósito de ver lá dentro a cura. Sintetizo e a transmuto.
Por tudo isso, sou visto geralmente como alguém tranquilo e, portanto, tranquilizador.
Não sou bom em confortar pela empatia, por meio de sentir ou perceber a dor do outro. 
Mas dizem que sou bom em acalmar, porque transmito paz no jeito e nas coisas que eu falo.
Escrevo tudo isso por notar como é engraçado como as coisas se combinam: a minha quase indiferença e as poucas esperança, empatia e ambição - que às vezes machucam - por suas faces de tranquilidade, aceitação, resiliência e contentamento fácil, outras vezes, são fontes de conforto e cura.

Despertar é desapaixonar-se

Quando eu tinha alta a esperança
Levava ao alto os braços para receber o sol e o vento
Quando ela baixou, despencaram-se meus braços que pesaram, com pesar
Desmanchou-se algo no peito.
 
Eu não quis levar tristeza até a lagoa nem ao mar, para não contamina-los
Deixei que eles ficassem lá com sua alegria pura
Sem meus olhos temporariamente tristes do encanto manchado
Mesmo eu sabendo que o encanto é que é uma mancha sobre as córneas.
 
Despertar é desapaixonar-se pelas coisas separadas - o outro ou você mesmo
Ou apaixonar-se pelo todo, amar a tudo igualmente, o que dá no mesmo
A paixão é a extinção do meio-termo: ora é dor, ora euforia, e nunca suficiente
Despertar é extinguir seu fogo dos desejos, e então serenar, contente.
 
Não estou desperto. Estou no meio da fumaça, entorpecido
Sei tudo: sei de Lídia, do que não seria tanto se não fosse apenas
Sei de amar sem receber, sei da pequenez das coisas, sei do bem maior
Mas saber não é viver. Quem apenas sabe tem um mapa em mãos e não caminha.
 
Despertar é desapaixonar-se pelo pouco, ou ver com-paixão a tudo
É uma indiferença alegre e compassiva de quem sai de cena, extingue-se
Não vou te desver, então, nem me desapaixonar. Vou desver a mim.
Até que, des-manchado como a areia fina, possa ser o chão de qualquer um.

Desmanchar-me em fina areia
Amar a tudo e ser soprado pelo vento
Banhado pela chuva e pisado pelos bichos
Por raízes transpassado. Pelo sol iluminado.

Desmanchado como a areia fina, possa ser teu chão
E moldar-me ao jeito que quiser andar
Para onde e para quem, com quem
Se quiser deitar.
...

Não era chuva lá no céu a vir, mas um pássaro a voar
Sem tocar, deste ao mar que estou tua cor e o canto.

Nessa ilha que formou-se do conhecimento que sedimentamos - a amizade
Sobre a areia fina que me faço chão
Sempre encontrarás a paz e pouso.

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Estratigrafia (circular) da paixão

A esfera da atração, a mais volátil 
é feita de ar.

Que vibra a partir das batidas cardíacas
e flui através dos suspiros ardentes.

É a esfera que sente, etérea.

A esfera da expressão, intermediária
é feita do som e da luz das palavras.

Do dito e do escrito
de olhares cruzados.

É a esfera que lança e alcança.

A esfera da realização, a mais densa
é feita de pele.

Da mão que se estende, segura e afaga
que dança.

Da pele que toca, que aquece e que sua
na sua.

É, pois, novamente
uma esfera que sente e etérea.

De dentro para fora se adensa
se as percorre e se volta.

Três esferas, uma essência.