Ontem num sonho transpus a barreira do eu e percebi nitidamente a sensação de uma outra pessoa. Tive um instante que teria demorado varias garrafas de vinho e muitos dedos de prosa…
Senti-me na pele de meu vô. Entre a família era o nono Paulo e era para seus amigos e companheiros de idade Paulim. Digo era porque Paulim era o mais novo de seus comparsas de época e agora porém todos mortos, menos ele.
Com seus 80 anos, as tardes se esvaiam em olhares da varanda da velha casa onde toda a família fora criada. Olhares em direção ao vale cortado pelo Arroio Pinhal e pela federal, estrada Br-116, que assim meu nôno a chama.
Tardes aonde não mais se iam aos carteados, nas cachaças de porão e as visitas.
Agora o que se transcorria era um vazio que de vez enquando terminava com uma palpitação de angustia por uma crise de ansiedade.
Já não ligava mais o rádio que eu e minha irmã crescemos ouvindo o chiado dos jogos de futebol do colorado. Morando aqui da capital sinto saudades do seu assovio o qual me chamava para o almoço ou café da tarde.
Ele sempre fora muito quieto, mas agora anda com um ar de desânimo. Reclama que seu tempo já passou . Deita se na cama e mira o teto e não espera mais nada do dia. Até das gauchadas da televisão (filmes de bang-bang) não tiram ele do estado de torpor ambulante.
Criticamente minha nona reclama dessa inércia e acende velas para que o espírito santo, sequieri e o patre nostrego resolvam esse problema.
Bom - voltando ao sonho- reconsolidei as palavras ditas de meu velho durante o velório de um de seus últimos amigos: É... agora só sou eu.
Isso ficou guardado em meu subconsciente que veio a tona durante a noite.
Numa força e verossimilhança que só a imaginação inconsciente do sonho pode criar , surgiu então um amigo de meu avô... que no contexto havia por desaparecido a muito tempo nesses caminhos da vida.
Meu vô ao revê-lo abraçou-o e postou um sorriso bonito e limpo. Assoviou chamando minha vó – Venire qua! Varda chi è arrivato! E começaram a contar suas histórias.
Via-se a cara dele de felicidade nesse reencontro. Algo que tinha rompido a barreira de torpor.
Quando acordei dei-me por conta que pelo menos havia vivenciado o sentimento que meu avo esta passando, não que isso seja ou justifique a totalidade de seu desânimo, porém comecei a entender o âmbito de sua tristeza.
É como que se tivessem apagado parte de nossa vida, assim como se perde o sentido de um sistema quando a maior parte dos elementos foi excluída. É como se existisse um bosque e agora só resta você como árvore. E o que resta é o triste desfecho.
Também não se trata de estar ou não preparado para o fim.Obviamente poucos ficam confortáveis com o sentimento de vazio dos outros. Da exacerbação da punção de morte alheia. Somos tão aficionados com a vida que repudiamos a morte a maior parte do tempo. Não entendemos nem queremos entender a morte. E assim a vida soa como uma droga tão viciante que nos causa dependência e não nos deixa refletir sobre a sua abstinência. Como é difícil compreendemos que para a existência não existe vida nem morte, estes meros termos didáticos adotados.
Assim essa substancia chamada vida nos distancia da vivencia do dualismo cíclico da existência: A Vida que constrói a morte que refaz a vida.
Sinto que sustentar uma vida vazia é gerar muita dor, é alimentar o medo.
Caralho! Baixou o espírito. Muito bom...
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